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O Presentinho de Algodão

Atualizado: há 7 horas



Quando o corpo morre, só resta a alma, que nos guiará pela eternidade.

— Provérbio Hitaísta.

 

 

Era o primeiro dia do Feriado da Gratidão e da Reciprocidade, a continuação do Feriado da Promessa Divina, que ocorria no meio do ano e celebrava a promessa de reconciliação dos Dois Que São Um com suas singelas criaturas. A época em que os islunos, os espíritos mensageiros, viajavam ao Mundo dos Mortais trazendo boas-novas, geralmente na forma do bom velhinho.

Para a maioria, um dia para estar feliz; para alguns, para apenas fingir.

Aander, que integrava o último grupo, até queria estar contente. Queria se divertir com a esposa, Delina, e o filho, Aandur. E esperava, a todo momento, ser contagiado pelo espírito festivo e de renovação, que marcava aquela reunião em família, onde também estava cercado de amigos.

Por toda a sua volta na área de cobertura do Grande Parque, crianças brincavam, corriam e pulavam. Adultos brindavam, gargalhavam. Riam e conversavam, enquanto os robôs flutuavam, servindo cada mesa, dançando e cantando as músicas temáticas:

 

 

 

GRATIDÃO E RECIPROCIDADE

 

Gratidão,

a perfeita expressão

da reciprocidade.

Pois eis a verdade:

dar o equivalente ao que se recebe dos outros

e esperar dos outros

o equivalente ao que se dá.

 

É a lei das relações humanas saudáveis,

que escapam do unilateral;

a lei das normas,

que, afetando toda a sociedade,

presumem uma coletividade;

e, com isso, a lei da argumentação,

que, partindo da capacidade de entendimento mútuo,

e envolvendo as partes afetadas,

afirma-se

como a condição

pela qual

se justifica uma ação.

 

 

FIM DE ANO

 

É mais um ano que passa.

Tempo de agradecer

ou lamentar.

De debitar os credores

e creditar os devedores.

Refletir sobre o que se passou,

tentar corrigir os erros

e, ao mesmo tempo,

aprimorar os acertos.

Algumas coisas permanecem,

outras renascem

ou desaparecem.

É como o fim de uma jornada

e o começo de outra,

mesclando continuidades

e rupturas,

direcionando, assim, a vida futura,

sempre ancorada

em novidades.

 

 

Em meio à comemoração da data, Aander se retinha a uma antiga lembrança.

Cabeceava de sono na cama. Durante um embate entre o inconsciente e o consciente, ouvia o ranger da porta do quarto se abrindo, os risos de Radena e Guílemm soarem e o ritmo do andar de Lilynda, a então cadelinha da família, com seus pelos curtos dourados, que subira em sua cama, a despeito das patas diminutas.

Acordara sobressaltado, sentando-se rapidamente na cama e protegendo suas bolas com o travesseiro (por trás do pijama, estava sem cueca).

Gargalhara da posição em que havia dormido, e sorrira para Lilynda, acariciando-a.

As orelhinhas caídas da pequena cadela se ergueram em reação aos aplausos dos irmãos, e os ouvidos, se aguçaram.

— Obrigado, Lilynda — agradecia Aander com aquela voz falsete adequada à pequenez do animalzinho. Observava-o balançar o rabinho e fitá-lo com seus olhos castanhos, que faiscavam feito uma bolinha de gude.

— Sempre ela para acordar você! — Radena esboçara humor, cutucando com o cotovelo Guílemm, que ria.

E era verdade. Durante dezoito longos anos (que agora pareciam ser curtos, de tão insuficientes), Lilynda sempre lhe surpreendera ao amanhecer, antecipando o despertador.

Um sorriso delineou-se rápido no semblante triste de Aander.

Pouco antes de Lilynda vir a falecer, escrevera-lhe uma poesia:

 

 

Lilynda,

a princesa canina!

Seus olhos brilham,

são a expressão de sua alma:

mais humana, impossível!

Eles querem dizer algo

e realmente dizem,

pois substituem a fala,

que, em falta,

basta aquele olhar pidão,

de encantar qualquer coração.

 

 

Ah, aquelas orelhas caídas... aqueles olhos pidões...

Aander repetiu, talvez pela décima vez, aquele esforço de memória, como se quisesse gravar tudo na mente.

— Não vai comer, filho? — perguntou Môneli.

— Não, mãe... estou sem fome...

— Está triste?

— Não, não... estou bem. Só estou... hum... pensativo.

Delina cutucou o marido.

— O que você tem, Aander?

— Nada, já disse.

— Bom, você não comeu quase nada hoje, desde de manhã. Tem certeza de que não está sentido nada?

— Só estou com um pouco de náuseas.

— É claro. Você não comeu quase nada...

— Não estou com fome, bonequinha. — Sorriu. —  Fico enjoado só de pensar em comer certas coisas...

— Que coisas, por exemplo?

O mundo foi ficando turvo. As pessoas, lentamente, desapareceram da área de cobertura do Grande Parque. Restaram apenas silhuetas, silhuetas flutuando naquela paisagem borrada de luzes e concreto... O breu então se apoderou de tudo.

 

 

***

 

 

Aander acordou num lugar estranho, deitado sobre um tapete verde de grama, cercada de árvores.

— Que lugar é esse?

Não se lembrava de nada, embora estivesse com uma leve sensação de déjà-vu.

Havia ali um rio. Em sua margem mais distante, erguiam-se montanhas de picos nevados, cujo gelo, em certos pontos, derretia e descia em cascatas.

Estava com sede. Foi até a margem do rio para beber um pouco de água.

Decidiu explorar a região.

A brisa fresca, o canto das gaivotas que voavam acima do mar e a exuberância daquela bela paisagem pitoresca lhe eram aconchegantes.

Passou por uma caverna de gelo e por várias quedas d’água onde centenas de adultos e crianças se deleitavam, até adentrar um palácio feito de pedras preciosas, guarnecido por um jardim de árvores frutíferas.

No fundo do salão principal, um homem com corpo de guerreiro e uma mulher esculpida em curvas, que lhe lembravam figuras conhecidas, ocupavam duas cadeiras de ouro. Estavam nus, mas não sentiam vergonha; e Aander, por alguma razão, não ligou para este fato.

Exalavam todas as virtudes de seu sexo e, ao vê-los, o rapaz sentiu uma paz salutar tomar conta de si.

Ajoelhou-se diante deles, no automático, como se já os conhecesse há muito tempo. Fez uma mesura maior diante da mulher, tamanha era a sua beleza, que resplandecia todo o seu poder.

— Que lugar é esse, Mestres? — Por alguma razão, viu-se compelido a chamá-los assim.

— Você está no País Além-do-Espaço — respondeu o homem com seu vozeirão.

— Bem diferente da sua vida na Hitorgânia, não? — comentou a mulher.

— E o que é a existência? O que é vida? O que é Hitorgânia?

— Compreenderá essas coisas de novo tão logo voltar à vida no Mundo dos Mortais — assegurou o homem com amabilidade. — Mas, antes, queremos que faça uma aliança conosco.

— Uma aliança?

— Sim, um sinal de amizade. — A mulher sorriu. Sua voz imponente, agradável aos ouvidos de Aander, era suave como o som do deslizamento dos cisnes pelas águas.

— Vá ao Jardim do Palácio, suba numa árvore e nos traga o fruto que lhe parecer mais apetitoso — solicitou o homem.

O rubor nas bochechas de Aander combinava com a sua fruta predileta.

Atravessou as portas do palácio e seguiu na direção do jardim. Finalmente, identificou uma macieira, praticamente perdida naquele campão de árvores.

Aander contemplou a paisagem de relance. O caminho era demasiado longo.

— Peguei uma para você já!

— O quê?? Pegou para mim...??

Virou-se, atordoado, na direção da voz, que era infantil como a de uma criança.

Uma figura esguia e pequena, com seus pelos curtos dourados, surgiu a partir das folhas que sussurravam, empurrando uma maçã avermelhada com a pata direita.

O rapaz ficou um tempo parado, observando aquela criatura distinta, que, apesar dessa característica, lhe parecia familiar.

— Nós já nos conhecemos, não?

— Sim.

— Em outro lugar?

— Sim. Até porque este lugar aqui é muito diferente, tão diferente que, quando chegamos nele, coisas que antes faziam sentido deixam de fazer. Exceto uma coisa.

— O quê?

— O amor.

— O amor?

— Sim. Quando amamos alguém, somos capazes de reconhecer em qualquer lugar. Pois o amor une a única coisa que há de eterna em nós: a nossa alma.

Um sorriso contagiante iluminou o semblante de Aander.

— Eu reconheci você, Lilynda! — empolgou-se ele.

— Eu já sabia que você me reconheceria. Assim como eu também reconheci você na mesma hora.

Aander outra vez deixava as lágrimas lhe escaparem.

— Sinto falta de você no meu colo. — Sentou-se à vontade na grama.

— E eu de estar nele. — Lilynda sorriu com afeto, deitando-se no colo do antigo dono e lambendo o seu rosto barbado. — Mas você me tem em algo maior.

— Em algo maior?

— Sim.

— Em que, exatamente?

— Em seu coração. No amor. Onde você e eu somos eternos.

Aander pegou a maçã.

— Vou bom rever você, Lilynda.

— E pode apostar que ainda vamos nos rever de novo.

— Sei que vamos.

— Eu cheguei ao fim da minha jornada. Você está no meio dela ainda. Avante!

— Amo você!

— Eu também amo você, pai. E isso é para sempre!

Aander levantou-se. As lágrimas escorriam pelo rosto. Mas, daquela vez, chorava não de tristeza, mas em razão da mais profunda felicidade, que renascia das cinzas da melancolia.

Com um último gesto de despedida, atravessou as portas do palácio, em retorno.

— Pronto para voltar a compreender aquelas coisas que lhe falamos? — Os lábios da mulher de voz suave e imponente se retesaram mais uma vez.

— Acho... acho que sim.

Um forte feixe de luz branca disparou feito um raio ao redor do rapaz repentinamente, e ele desapareceu.

 

 

***

 

 

Aander se viu numa cama que não era a sua, sentindo como se tivesse dormido por bem mais tempo que o normal.

Olhou à sua volta com a visão turva que, aos poucos, foi se recuperando, até perceber que estava num quarto de hospital.

A porta se abriu, e uma mulher vestida de branco entrou. Devia ser a enfermeira.

Pôs-se a observá-lo com seus faiscantes olhos verdes, e depois tornou a sair do quarto.

A porta se abriu novamente, e a enfermeira retornou, seguida por Delina, Môneli e Janoer. Eram acompanhados por uma figura masculina gorducha, de nariz rechonchudo, bochechas rosadas, os cabelos e a barba brancos como a neve que caía lá fora. Trajava um uniforme vermelho, como de hábito, valendo o gorro na cabeça.

— Ele acordou — disse a enfermeira.

— Delina? Mãe? Pai?... — reagiu Aander em êxtase.

— ... e o Papai Noel! — completou o gorducho.

Aander arqueou as sobrancelhas.

As muitas risadas se espalharam pelo quarto.

— O que aconteceu comigo?!

— Você desmaiou — contou-lhe o pai.

— Desmaiei?!

— Sim! Teve uma crise de hipoglicemia, fiquei muito preocupada!

— Sua mãe e eu quase surtamos! — disse Delina.

— Pois é! Ela me disse que você passou quase o dia todo em jejum! Por que fez isso, filho?

— Ainda sente alguma coisa? — Janoer, que era médico, aproximou-se e tocou na testa do acamado.

— Estou ótimo! — apressou-se Aander a dizer. — Na verdade, nunca estive melhor... pelo menos não há um bom tempo.

— Que bom! Pois ainda dá tempo de comemorar o feriado!

— Ainda dá?!

— Sim — respondeu Janoer. — A festa ainda não acabou.

Aander suspirava de alívio.

Alguém bateu à porta.

— Mamãe! Posso entrar?

Delina fez um sinal para a enfermeira, que sacudiu a cabeça em confirmação.

— Pode!

A porta foi reaberta, e um garotinho entrou, segurando uma bola de pelos.

— Pai, olha só o que o Papai Noel deu para a gente!

Aander sentou-se na cama, recostando-se na cabeceira. Seus olhos brilhavam.

Logo viu aquela criaturinha frágil de algodão, balançando o rabinho com a língua de fora e um laço cor-de-rosa na cabeça.

— Que massa, filho! Qual é o nome dela? Ela tem cara de Bela. Você não acha?

— Quase todo mundo está dizendo a mesma coisa! — Delina gargalhou.

— Então, ótimo! Já nasceu vinculada a um nome! Então vai ser esse. Você gosta, filho?

— Gosto! — O garoto sacudiu a cabeça, empolgado.

— Até porque ela é bela, não é, Aandur? — exclamou Môneli para o neto.

— É!

Aander levantou um pouco a voz:

— Isso merece uma poesia!

E merecia mesmo.

 

 

***

 

 

Terminada a festa na vóiller de Úistandei, nas horas derradeiras daquela noite, que marcaria o fim do agitado dia, Aander se instalou à escrivaninha do seu escritório por alguns instantes. Observando os flocos de neve dançarem na janela, despejava os versos, direto da sua mente para o papel:

 

 

Bela:

o próprio nome já sugere

onde jaz seu encanto.

Criaturinha essa

cuja agitação

serviu de nítido contraste

para a quietude da noite

na qual chegou aqui,

no colo de sua mãe.

Em meio aos festejos,

a recebemos

para você encher esta casa de travessuras,

nos enlouquecendo

o quanto for preciso

em prol da maior recompensa,

que é o seu amor,

a áurea de seus olhos pidões,

a morada de sua alma,

tão humana quanto a minha,

mas também singularmente canina.

 

 

Foi quando Delina apareceu, vestindo a camisola de seda. Aproximou-se devagarinho e abraçou o marido pelas costas, surpreendendo-o com um beijo na cabeça.

— Vamos dormir?

Aander sorriu.

— Vamos, bonequinha. — Virou-se e retribuiu o gesto em seus lábios. Levantou-se, convertendo o telec do formato de computador portátil para a forma de despertador.

Os dois seguiram na direção do quarto.

— Amanhã, quero mostrar para você uma coisa. — Aander descansava a mão atrás das costas da esposa.

— O quê?

— Uns versos aí... envolvendo uma certa criaturinha de algodão.

Ele agora tinha certeza: seria capaz de amar outro cachorrinho de novo.

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