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Alexandre Braga

Nos Confins do Nada

Atualizado: há 8 horas



Toda destruição requer uma construção prévia.  — Provérbio Hitaísta.

 

 

No princípio, havia os Dois Que São Um e o temível Adrag: Hito e Hita e a antítese de si mesmos.

Na Fronteira do País Além-do-Espaço com o Abismo dos Tentáculos Agourentos, seus espíritos colidiam no vácuo furiosamente, como sinônimos colidem com antônimos e coexistem-se. O impacto da colisão arremessou o País Além-do-Espaço para o Norte, e o Abismo dos Tentáculos Agourentos para o Sul.

— Estamos longe dele agora! — contentaram-se os Dois Que São Um.

Aproveitaram a oportunidade e sopraram.

Do vapor exalado, nos confins do nada, materializou-se a primeira unidade da matéria, que se multiplicou até formar Xundra e Muam, a versão corpórea do que imaginou o próprio Divino, sua legítima obra-prima.

Os Dois Que São Um viram que tudo era bom.

— Já é hora de testar as duas criaturas! — disse Hito, que, no Mundo dos Mortais, ficaria conhecido como o Deus dos Astros e do Espaço.

— Sim, vamos testá-las agora! — concordou Hita, que, após a Cisão Entre Dois Mundos, ficaria marcada como a Deusa da Vida. — Não temos saída. O acordo com Adrag há de ser feito, apesar de toda a sua maldade e sede por caos e destruição completa.

Do novo sopro dos Dois Que São Um, duas vias espaciais, delimitadas por nuvens de poeira, se formaram, separando a obra-prima de seus criadores.

 

 

***

 

 

Xundra e Muam observavam tudo, trocando olhares apaixonados e indagadores, perplexos com a percepção de seus sentidos; ao mesmo tempo, fascinados.

Do outro lado, a voz de Hita, semelhante à de Muam, porém dotada de uma imponência muito maior, ressoou firme e clara pelo vazio:

— Ó, Xundra e Muam, nossa grande obra-prima! Pela Via da Luz, venham até nós! Somos os Dois Que São Um!

O desejo de obediência à autora daquela voz ocorreu de forma natural — nisto conferia sua autoridade.

Tão agradável aos seus ouvidos era! Soava como uma melodia.

— Sim, Majestade! — responderam com entusiasmo, ajoelhando-se em reverência, enquanto flutuavam no vazio, até pararem diante das nuvens de poeira. — Estamos indo agora, estamos indo agora, ó, Vossa Majestade que nos criastes!

Uma luz intensa iluminou a via da direita.

Xundra e Muam se encantaram com ela.

— É tão... linda! — impressionou-se Muam.

— Essa é a Via da Luz — apresentou Hita. — Ela representa a nossa amizade.

— A nossa amizade?

— Sim!

As duas criaturas sorriram. Seus olhos, que traziam a mais pura inocência infantil, refletiam toda aquela luminosidade, com a plena graça da alegria de viver.

O coração dos membros da Única Espécie Racional, contudo, facilmente tentado pela curiosidade, fez com que eles também parassem para espreitar a via da esquerda, perdida por completo na escuridão.

— O que será que tem lá dentro? — quis saber Xundra.

— Não sei — respondeu a sua parceira. — É estranho... Não consigo ver nada.

Imediatamente, sentiram que estavam diante de um terreno desconhecido: o que quer que houvesse lá dentro estava sendo ocultado pelo breu.

— E esse outro caminho, Majestade?

— Essa é a Via Sombria — apresentou Hita. — Se entrarem, se forem por esse caminho, deixarão os nossos e os vossos corações demasiado entristecidos. Além disso, morrerão e serão conhecedores, assim como nós, do bem e do mal. Cairão no Abismo dos Tentáculos Agourentos para sempre.

— Mas o que é o Abismo dos Tentáculos Agourentos? — perguntou Xundra.

— Um lugar onde há escuridão e sofrimento eternos.

— Escuridão e sofrimento eternos? — Os olhos de Muam se escancararam.

— Sim. Um vazio infinito onde não existe o bem, somente o mal. Nós, os Dois Que São Um, somos o bem, assim como todas as coisas que criamos são o bem. Se forem pela Via Sombria, perderão a sua essência. Deixarão de ser quem são. O medo reinará sobre vós para toda a eternidade.

Xundra e Muam, embora não entendessem bem o significado daquelas palavras, sabiam do desejo de Vossa Majestade, e não se imaginavam distantes da Luz.

Mas não sabiam explicar o porquê: o desconhecido também despertava tanta curiosidade...! Talvez por não saberem o que esperar dele. Bem, não importava.

Escolheram a via da direita, sem hesitar, mas, antes, pararam para dar uma rápida espiada na outra. Só uma espiada rápida não deveria realmente fazer mal, por que deveria?

Porém, às suas costas, imediatamente, a nuvem de poeira fez uma curva acentuada, fechando a via.

Xundra e Muam estremeceram.

Logo se arrependeram de terem tentado saciar aquela curiosidade. Agora já não tinham mais como voltar. O que, exatamente, lhes aconteceria ali?

 

 

***

 

 

Conforme avançavam, a via da esquerda ia se revelando abaixo de seus pés. Não era nada agradável. Tentáculos, poeira e olhos vermelhos que brilhavam de malícia se enroscavam em seus corpos. O cheiro do ar era horrível, pesado e indescritível; fazia respirar parecer um esforço.

Procuraram meios de buscar ajuda a todo custo, mas falar nunca se mostrou tão cansativo. Esforçaram-se, então, para emitir algum som, a gritar, mas suas palavras iam morrendo em virtude da exaustão, ao passo que a densidade do ar só aumentava, impedindo-os de fazerem qualquer parada.

 

 

***

 

 

Foi debaixo de uma tempestade cósmica, durante um tempo que pareceu interminável, que chegaram ao fim da via. Assim como a da direita, ela desapareceu, como se tudo fosse miragem.

— Por que não nos atenderam? — indagaram os Dois Que São Um, acabado o trajeto. — Por que foram pela Via Sombria, e não pela Via da Luz, como expressamos em nossa vontade?

O tom incisivo da pergunta as deixou assustadas. Sentimento este que, para ambas as criaturas, era completamente novo.

— Mas nós não queríamos ir por aquela via! — apressou-se Xundra a explicar.

— Só queríamos dar uma espiada nela! — complementou Muam.

— Não interessa! — vociferou Hito. — Não era para vocês terem entrado lá em hipótese alguma!

Xundra e Muam não souberam mais o que falar. Ficaram em silêncio, contemplando-o de cabeça inclinada.

— Agora, infelizmente, vocês terão de carregar um fardo muito além de sua capacidade de suportar — lamentou Hita. — Para sempre.

A tempestade cósmica se intensificou; parecia o reflexo da fúria dos Deuses despertando.

Xundra e Muam outra vez se assustaram.

Perceberam que estavam nus, mas seus corpos, cheios de feridas. Cobriram-se o máximo que puderam, enquanto gritavam sem parar.

A eternidade havia sido rompida, e a pureza, desvanecida.

Ao longo da jornada, passaram a conhecer o bem, o mal e a morte.

Xundra e Muam se fragmentaram em minúsculas partículas, e desabaram.

Jorrados para fora do País Além-do-Espaço, os fragmentos salpicaram o vácuo.

Alguns convergiram e formaram o Tempo, o semideus, que estabeleceu os limites da fronteira temporal, a Cisão Entre Dois Mundos, o Mortal e o Espiritual. Ele cantou:

 

 

Detenho todas as memórias.

Tu já sabes minha história.

Faço parte do teu dia a dia

e tenho empatia.

Eu sou o Tempo!

Diante de más ações, só lamento,

pois é verdade

que sigo uma linearidade.

Contudo,

se fores sortudo,

precavido,

terás poucos problemas comigo.

 

 

O Tempo então iniciou sua jornada, e o restante dos fragmentos continuou a desabar. Uns também se fundiram, formando Neutrópolis, o País dos Seres Que Não Existem; outros deram origem a todo o Multiverso de Aalenur, como conhecemos: formado por diversos seres vivos, estrelas, planetas, cometas, asteroides, satélites e buracos negros, que davam acesso aos outros mundos, verdadeiros escapes da imaginação divina.

Hito dividiu o espaço em dois firmamentos: um que o delimitava do País Além-do-Espaço, lar dos Dois Que São Um; outro que o delimitava do Abismo dos Tentáculos Agourentos, lar de Adrag.

 

 

***

 

 

Apesar das duas singelas criaturas não terem passado no teste, a misericórdia de Hita era grande. Abraçou cada planeta e cada satélite, abençoando os fragmentos de vida da Única Espécie Racional, espalhados ao longo das galáxias, em sua luta incessante contra a ambivalência da natureza, benevolente e traiçoeira, como as estrelas.

A esperança passou a contrastar com a sombra existente no multiverso. Possibilitando que, por meio dos Quatro Espíritos dos Dois Que São Um (os doclus, os espíritos guardiões; os islunos, os espíritos mensageiros; as lorgandas, os espíritos da moralidade; e os Filhos da Profecia, nada menos que a versão corpórea do próprio Divino), a Filosofia Hitaísta fosse aplicada e solenemente respeitada; a Cisão Entre Dois Mundos, abolida posteriormente.

Assim, seus verdadeiros seguidores passariam a poder regressar para o País Além-do-Espaço, onde viveriam em paz, harmonia, fraternidade e abundância, eternamente, após completarem a Jornada da Vida.

— Nem mesmo vossa obra-prima escolheu segui-los! — provocou Adrag.

— Mas merece uma segunda chance, pois tanto Muam quanto Xundra desconheciam a dualidade do bem e do mal, e o que não é conhecido não pode jamais ser aprendido! — Hito e Hita responderam à altura, e disseram a Adrag, desafiadores: — Para sempre criaremos!

— E para sempre comerei o que vós criareis! — retorquiu ele.

— Então agora que terás comilança, enche a tua pança, devora os teus seguidores e, aos nossos, não trazes mais dores!

Pois, no multiverso, sempre houve a dicotomia do Outro, e foi pensando nesse aspecto que os Dois Que São Um decidiram criar o mundo. Entretanto, para isso, tiveram que negociar com o Inimigo, Adrag, o Senhor do Caos e da Destruição, que, por centenas de bilhões de anos, permaneceria solitário no Abismo dos Tentáculos Agourentos, só esperando o momento certo para desestabilizar o acordo firmado com os Dois Que São Um.

Os olhos vermelhos e ameaçadores, sedentos por caos, discórdia e destruição infinita, esquadrinhavam cada vestígio de vida racional que se formava pelo espaço, movimentando-se a cada indício de oportunidade detectado. Por mais que muitas vidas tenham se formado no decorrer desse tempo, nenhuma delas de fato atendeu às suas expectativas, oferecendo somente chances muito remotas de ataque.

Quando, por fim, os olhos de Adrag tornaram a se fixar, estavam diante do mesmo planeta azul, o único habitável a orbitar uma estrela anã branca. Ao contrário das outras vezes, detectou, porém, naquele momento, uma oportunidade de ataque jamais vista. Tão certeira que, de longe, propiciaria, consequentemente, também, a morte de seus irmãos estéreis: de todos os planetas vizinhos inabitados.

Azul é uma cor inadequada, pensou Adrag, eu mudaria para vermelho.

Mas um olhar sensato diria que ele era azul somente. Ou, pelo menos, azul na maior parte, pois, além das nuvens que flutuavam sobre sua atmosfera, havia continentes imensos e verdejantes; outros, desérticos em certas áreas; e alguns inteiramente cobertos por gelo e neve.

Assim como em outros planetas, a vida lá teve de recomeçar do zero, evoluindo a partir do comportamento e da interação entre cada partícula atômica, herança da fragmentação da Única Espécie Racional.

O fenômeno deu origem a uma variada gama de espécies. Adrag, naturalmente, mirou naquelas que mais se assemelhavam à obra-prima divina, pois não poderia agir de outro modo senão através de ações intencionais, de indivíduos dotados de razão.

Não por acaso, o desenvolvimento da inteligência em algumas espécies animais coincidiu com o surgimento do culto aos Dois Que São Um e ao seu oposto, Adrag.

O mundo tornou-se, de repente, bipolarizado; de um lado, os que queriam que a luta pela sobrevivência se pautasse em preceitos morais; do outro, os que queriam a relativização de tudo, variando o que fosse permitido de acordo com as conveniências circunstanciais e arbitrárias dos grupos dominantes.

Esta condição marcou dezenas de milhares de anos desde o início do avanço da inteligência em algumas espécies, que viviam da caça e da coleta, prolongando-se desde o fim da Era Arcaica à gênese da Era Clássica em diante, que lugar às primeiras civilizações.

 Havia, de fato, algo de muito peculiar naquele planeta, que logo chamou a atenção de Adrag. Para começar, vida inteligente em abundância! E ainda uma espécie nova: uma das mais inteligentes, tendo como habitat o interior do planeta, o interior do que chamou de Planeta de Sangue Central. Exatamente onde se achava parte do que eles chamavam de pedras mágicas, também produto de bilhões de anos de evolução, abrigando a alma divina.

Adrag gargalhou.

Pobres planetas, já com a semente de sua própria destruição...

Os Planetas de Sangue! O nome perfeito!

Centrou-se em estudar o comportamento daquela espécie singular de vida inteligente, que, aos poucos, se desenvolvia. Tentando decodificar seus hábitos e costumes, além de suas principais preocupações e anseios. Agindo através das más índoles, via pedras mágicas, que, uma vez tocadas, dariam lugar à sua alma, exatamente como a luz cedia à escuridão, assim que apagada.

Na hora certa, os tentáculos se esticaram para fora do Abismo e, com eles, uma fumaça escura, que viajou longa distância, até se misturar à atmosfera do Planeta de Sangue Central.

Era a sombra do multiverso, submergindo das trevas, pela primeira vez, desde a Cisão Entre Dois Mundos.

 




 



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