top of page
space-911785_960_720.jpg
Alexandre Braga

Madrugada Clandestina



Viver é estar sob alerta. — Provérbio Hitaísta.

 

 

Na costa da Ilha de Rayslanth, havia um homem e um vilarejo.

O homem estava prestes a se casar. Sua pretendente era a moça mais bonita e requisitada de que se tinha notícia na época, de família boa e respeitada, com ampla influência na região. Ele, por conseguinte, contava com a melhor reputação entre os noivos. Era quem quase todos os homens queriam ser e quem quase todas as mulheres queriam ter como marido. Os murmúrios eram seu rastro:

— Você viu quem acabou de passar aqui?

— Eu o conheço, é o Djonei!

— Isso mesmo! O homem mais afortunado do povoado!

— E ele é meu amigo!

— Mentira!

— Por que mentiria sobre isso?

— Como ele é lindo!... — Algumas mulheres suspiravam, com aquele ar sonhador de juventude.

De qualquer modo, contrariando as expectativas, na tarde da véspera do matrimônio, quando Djonei saiu de casa para pegar água no lago que se situava nas fronteiras, o rapaz ouviu uma voz que faria sua vida mudar para sempre — uma voz feminina, particularmente doce e sedutora, mansa e musical.

— Venha até mim, Djonei... venha até mim... venha até mim que tudo ficará bem...

Derrubou o balde no chão, sobressaltado. Arqueou as sobrancelhas.

— Quem está aí?! — reagiu, estupefato, enquanto se virava para ver quem era.

Sua cabeça girava para todos os lados, à procura da autora daquela cantoria. Mas não havia ninguém naquele local além dele e, num dado momento, a voz começou a baixar seu tom até desaparecer.

Devo estar ouvindo coisas.

Após encher o balde, regressou ao centro do vilarejo e abasteceu o estoque de água. Saciava a sede, em êxtase, quando ouviu a voz se repetir.

— Venha até mim, Djonei... venha até mim... venha até mim que tudo ficará bem...

— Quem canta essa música?! — O homem trazia certo temor na voz.

O silêncio, no entanto, continuou impenetrável.

— Falando sozinho, moço? — estranhou uma mulher que passava ao seu lado com um balde d’água na cabeça, talvez fingindo que não o conhecia.

— Não — respondeu Djonei inutilmente.

Começou a duvidar seriamente de sua sanidade mental. Será que estava ficando maluco? Ninguém parecia ouvir aquela voz além dele... Será que tudo era alucinação?

Duas vozes distintas e antagônicas invadiram-lhe a mente:

“Pergunte às pessoas perto de você se elas estão ouvindo essa voz”, aconselhou uma delas. “É a melhor forma de saber se você realmente está enlouquecendo ou não.”

“Mas tem a possibilidade de você fazer um papel ridículo”, argumentou a outra.

“Quem não arrisca não petisca”, replicou a voz a que ele resolveu dar ouvidos.

Jamais conseguiria desvendar esse mistério sozinho. Tinha que saber se mais alguma pessoa ouvia aquela voz. Tinha que perguntar a alguém, e era o que estava disposto a fazer, custasse o que custasse.

Avançou pela rua entremeada de árvores e pequenos arbustos, ladeada por pequenas lojinhas abrigadas no terraço de cada uma das casas que iluminavam a passagem, com o telhado escarpado coberto de grama. À frente e em volta de todos eles, vendedores ambulantes desfilavam, anunciando seus produtos com o humor típico do fim da tarde, às vésperas de recolherem os lucros.

— O senhor ouve essa voz? — indagou a um homem que vendia bugigangas.

— Que voz, Djonei? — Ele franziu as sobrancelhas, confuso. — Não estou ouvindo voz nenhuma, meu caro.

— Venha até mim, Djonei, venha até mim, venha até mim que tudo ficará bem...

Com um mau presságio, o rapaz deu continuidade aos questionamentos. Perguntou a uma mulher que andava com um jarro na cabeça:

— A senhorita consegue escutar essa voz?

— Que voz? — Ela fez uma careta. — Não estou ouvindo voz nenhuma. — Acrescentou com uma ligeira rispidez, antes de virar as costas: — Seu Djonei, sinto muito, mas o senhor deve estar delirando!

Não era possível... Estaria o rapaz beirando a insanidade de fato? Ou tudo aquilo era apenas parte de um pesadelo do qual ele em breve despertaria?

Chegou a dar duas voltas pelo vilarejo inteiro em mais uma vã tentativa de descobrir a identidade da autora daquela voz, a voz mais bela que já ouvira.

— Venha até mim, Djonei, venha até mim, venha até mim que tudo ficará bem, venha até mim, Djonei, venha até mim que tudo ficará bem... — a voz prosseguia incansável, sem sair do tom, mantendo a melodia.

Diante daqueles acontecimentos, o rapaz acabou concluindo, embora com certa relutância, que imaginara tudo aquilo.

— Mas como?! — perguntava-se, a todo instante. — Parecia tudo tão real!

Voltou para casa, ciente de que nada daquilo soava convincente.

— Vou dormir — murmurou consigo mesmo ao abrir a porta dianteira. — Acho que é disso que eu preciso. Deve ser por isso que estou ouvindo essas coisas; afinal, não dormi bem essa noite. Talvez, depois de me recompor, tudo isso acabe.

A casa estava vazia; sua família se encontrava em serviço.

Quando entrou no quarto, porém, havia uma mulher nua deitada em sua cama.

— Quem é você?! — berrou assustado. — E como entrou aqui?!

— Eu estava só esperando, Djonei — disse a autora da voz enigmática com um sorriso ludibriante. — Venha até mim, venha até mim, venha até mim, pois tudo ficará bem...

Era, de longe, a mulher mais bela que Djonei já tinha visto. Nem parecia ser real.

Voz perfeita, aparência perfeita... Será que a ela falta alguma virtude?!

— Como entrou aqui? — repetiu o rapaz. — O que está fazendo deitada na minha cama... assim? E como sabe meu nome, como conseguiu cantar aquela música pelo vilarejo inteiro sem ser vista... Como...? — As palavras lhe escaparam.

Ficou perdido na contemplação da moça, como se estivesse enfeitiçado. Despiu-se. Antes de se juntar a ela para fazerem amor, porém, ficou admirando aquele corpo esculpido em curvas, com o desejo ardente de tocar naqueles seios grandes e macios.

Mas o sorriso da mulher sumiu, e Djonei se deu conta de que caíra na armadilha de uma lorganda.

Todos os habitantes do vilarejo sabiam da existência dos espíritos da moralidade, as lorgandas. Enviadas ao Mundo dos Mortais pelos Dois Que São Um para julgar cada indivíduo de acordo com a Filosofia Hitaísta, direcionavam seu foco para a Moral, que, diferentemente da Lei, transcendia o escopo da resolução de conflitos terrenos e a capacidade de julgamento dos fragmentos de vida da Única Espécie Racional, cuja verdadeira índole só era de conhecimento de Hita.

— Recebi uma ordem dos Dois Que São Um, para testar mortais como você — enfureceu-se a lorganda, olhando-o com reprovação. — Eles quiseram ver até onde vai a sua fidelidade matrimonial. E, pelo visto, é tão frágil quanto um bebê recém-nascido!

O medo se abateu sobre Djonei, enquanto ele se ajoelhava, num gesto de súplica.

— Mas nós nem chegamos a fazer amor!

— Porque eu não deixei — retrucou a lorganda com aspereza.

— Por favor, me dê só mais uma chance, só mais uma chance, por favor! — suplicou Djonei, os olhos lacrimejando.

— Mais uma chance?! — reiterou a lorganda enojada. — Ah, agora já é tarde!

— Mas, no começo, eu não sabia que você era uma lorganda! — Djonei entrou em desespero.

— Seu humano imundo, hipócrita! — reagiu a lorganda com desprezo. — Como ousa... Como ousa justificar um adultério?! Como ousa justificar um pecado a Hita?! Aqui o senhor pode ter toda a reputação do mundo, mas não além do espaço! — Ela bufou. — Por sua desobediência, você será castigado!

— Por favor, não faça isso comigo, por favor, por favor, por favor, não!... — implorou Djonei, arrastando as sílabas. Lágrimas brotavam de seus olhos incessantemente.

— Eu lhe dou a seguinte maldição — disse a lorganda, por fim: — você se transformará numa estrela e, durante toda a sua vida, viajará pelo espaço! Quando isso acontecer, pessoas de todos os lugares lhe pedirão desejos e, cada vez que você os realizar, seguindo a Lei Hitaísta, experimentará toda a dor de ser traído!

Um clarão se expandiu pela casa e atingiu as bordas do céu.

E assim, naquela noite, surgia a primeira estrela cadente do mundo, uma estrela diferente de todas as outras estrelas, cujo brilho intenso, para os desavisados, se confundiria com o dos cometas que viajavam sem rumo pelo espaço.

O fenômeno foi registrado pelos demais habitantes do vilarejo, que, apesar de desconhecerem a sua origem, nomearam o episódio de “Luz Nascente”.

Marcava o fim de uma vida humana, mas também o começo de muitas outras, para quem, a despeito das origens, ganharia novos significados, como de alegria e esperança.

 

 

 

***  

 

 

 

— Então, vó, essa história é real? — perguntou o jovem Luvinor, ligeiramente assustado.

— Antigas gerações acreditavam que sim, mas não — respondeu a senhora seriamente. — A Lei Hitaísta só prevê penas que sejam proporcionais.

— E não foi? O Djonei não foi condenado a passar anos e anos sentindo a dor de ser traído, a cada pedido que realizar?

— Sim, mas perdeu a sua autonomia como indivíduo, o que não está implícito no crime de adultério.

Luvinor pensou um pouco.

— Por que a senhora resolveu me contar esta história, então?

A avó inspirou profundamente.

— Bom, o seu casamento ocorrerá hoje à noite. Apenas quis reforçar a gravidade que é trair alguém a quem jurou legalmente ser fiel.

O neto saltou da cadeira, estarrecido.

— A senhora acha que eu seria capaz disso?!

A avó espiou através da janela na parede de trás. Abriu um sorriso malicioso.

— Não se preocupe, seu avô já foi se deitar. E agora está com cara de quem não desconfia de mais nada.

— Ótimo, não precisamos mais fingir que não somos amantes!

Havia urgência naqueles olhares, a urgência de quem quer aproveitar o máximo possível a clandestinidade, antes de o Tempo passar e a verdade desnudar.

0 visualização0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page