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A História das Duas Fadas

Atualizado: há 7 horas



De um lado, as vestes de amor dos Dois Que São Um; do outro, as vestes de ódio de Adrag, o Senhor do Caos e da Destruição.

— Provérbio Hitaísta.

 

 

— Mamãe, por que existem tão poucas fadas em Rayslanth?

A Fada-Abelha-Rainha, a mãe de todos, pela primeira vez desfocou o olhar da tela pluridimensional do minúsculo telec, onde analisava o último relatório acerca do balanço da produção de mel.

— Você acha pouco? — Inclinou-se para pegar a princesinha no colo.

— Acho. Nem as fadas-formigas existem aqui. E é porque elas são as mais numerosas.

— Quem lhe disse isso, minha filha?

— Ouvi a senhora comentando com o papai uma vez.

— Sim, é verdade. Li sobre esse assunto.

— Por que isso, mãe?

— Quer saber mesmo?

— Quero!

A Fada-Abelha-Rainha sorriu. Contentava-se com toda a sede de conhecimento que, desde cedo, havia na menina. Chamou seus auxiliares, baixinho:

— Por favor, tragam o livrinho que adquiri no último leilão.

As ordens foram cumpridas.

Naquela altura, as fadas-abelhas eram um dos poucos fragmentos de vida da Única Espécie Racional a não contar com mão de obra mecanizada, pois as operárias tinham orgulho de seu ofício e faziam tudo com o maior gosto, voluntariamente. Viam o trabalho como sua razão de viver e — não à toa — obtinham ótimos resultados.

Em pouco tempo, a Rainha já folheava as páginas do livro, que era todo ilustrado.

— Aqui temos a história da última fada-formiga e da última fada-cigarra.

— Oba! Lê para mim! — comemorou a princesa.

— Vou ler. Preste bastante atenção.

 

Bilinda, a fada-cigarra alegre e falante de conhecimento de todos, mais uma vez saltitava e dançava pelo bosque, sem se preocupar com nada. Naquela vez, entretanto, esbarrou numa fada-formiga, uma das espécies de fadas mais numerosas, como sua mãe dizia, mas que, praticamente, não dispunha de tempo para descanso.

Como de hábito, carregava uma folha pesada, em mais uma rotina de trabalho puxado.

Bilinda pediu-lhe desculpas pelo acidente e a ajudou a se levantar. Tentada pela curiosidade acerca daquele estilo de vida tão diferente, indagou, falando um fada-formiguês com sotaque:

— Ei, para que tudo isso, minha amiga? O verão é para a gente aproveitar! O verão é para a gente se divertir, ora essa!

— Não, não, não! Nós, fadas-formigas, não temos tempo para diversão. É preciso trabalhar agora para guardar comida para o inverno.

— Você quem sabe.

Durante o resto do verão e do outono, a fada-cigarra continuou se divertindo e passeando por todo o bosque. Quando tinha fome, era só pegar uma folha e comer. Simples, não?

Um belo dia, passou de novo perto da mesma fada-formiga, carregando outra pesada folha.

— Deixa esse trabalho para as outras! Vamos nos divertir. Vamos, fada-formiga, vamos cantar! Vamos dançar!

Ela pensou um pouco. Gostou da sugestão. Só um pouco de divertimento não deveria fazer mal... por que deveria?

— Qual o seu nome?

— Bilinda. E o seu?

— Zena.

— Muito prazer, Zena.

Cumprimentaram-se com um aperto de mão.

A fada-formiga resolveu ver a vida que a fada-cigarra levava e ficou encantada. As duas deslizaram pelos galhos e pelo tronco das árvores, balançaram-se nas folhas, se divertiram muito!

Zena decidiu mudar seu estilo de vida para aquele. Tão divertido ficar brincando, não ter de ficar levantando aquelas folhas pesadas...

No dia seguinte, contudo, apareceu a Fada-Formiga-Rainha do formigueiro. Ao observar a filha se divertindo à toa, olhou feio para a menina e ordenou que voltasse ao trabalho. Tinha, enfim, terminado a fartura.

Falou então para a fada-cigarra:

— Se não mudar de vida, no inverno você há de se arrepender! Vai passar fome e frio!

A preguiçosa nem ligou. Fez um gesto de reverência para a rainha.

— Ham! O inverno ainda está longe, senhora! Tenho de aproveitar o máximo possível!

Para a fada-cigarra, o que importava era aproveitar a vida, e aproveitar o hoje, sem pensar muito no amanhã. Para que construir um abrigo? Para que armazenar alimento? Ainda naquela altura, pura perda de tempo.

Quando o inverno chegou, porém, veio o peso na consciência. A fada-cigarra começou a tiritar de frio. Sentia seu corpo gelado e não tinha mais o que comer. Desesperada, foi bater na casa da fada-formiga com quem fizera amizade. Mas quem abriu a porta foi a rainha. Ela parecia furiosa.

— No mundo das fadas-formigas, todos trabalham. Não aceitamos preguiçosas como você e sua trupe aqui. Morra de frio e aprenda a lição que devia ter aprendido há muito tempo, de uma vez por todas!

— Mas...

Não deu nem tempo de a fada-cigarra protestar; a rainha fechou a porta na sua cara.

Estremecendo, Bilinda observou o gelo e a neve à sua volta, e sentiu ainda mais frio. O frio que, provavelmente, traria sua sentença de morte.

Foi nesse momento que o poderoso inimigo dos Dois Que São Um, Adrag, o Senhor do Caos e da Destruição, surgiu através de uma caverna, após fugir do Abismo, o verdadeiro lugar dele, ao ser fortalecido pela má índole de alguns anões. Levantando poeira para todo lado e causando um terremoto de grande magnitude, rachou a ilha ao meio. Avançou sobre a terra árida e gelada, sobre a mata coberta de neve, sobre os gêiseres, sobre o enorme deserto de gelo, sobre as terras altas, as montanhas e os vulcões recém-despertos, até chegar aos fiordes ocidentais e descer pela costa de praias onde a neve ocupava o lugar da areia e das pedras, devorando boa parte do relevo envolto por aqueles lençóis brancos, espantando todos os animais que estavam em volta. Matando quase todos os de grande porte, à exceção de algumas raposas polares, escondidas no interior das cavernas, e das aves migratórias, que deixaram a ilha enquanto voavam acima do mar agitado de ondas gigantes, como um aglomerado de nuvens que, pela força dos ventos onde dançavam os flocos de neve, se deslocava para o norte e para o sul, para o leste e para o oeste, para o nordeste e para o noroeste, para o sudeste e para o sudoeste. Praticamente sem rumo.

A fada-cigarra viu uma fumaça escura, de onde saía uma série de tentáculos assustadores, se aproximar, cobrir o limite das nuvens e destruir todo o formigueiro à sua frente.

— Adrag! — Bilinda afastou-se bruscamente, quase caindo no chão. Cobriu o rosto com as mãos e gritou, aterrorizada. — Zena! Zena! Ai, Deuses, Zena!...

Vendo que, por alguma razão estranha, continuava viva, desprendeu as mãos do rosto, abriu os olhos e se assustou.

Uma pequena mão surgiu em meio aos pedaços de madeira da árvore derrubada.

— Estou aqui! — disse a fada-formiga com a voz rouca, erguendo-se enquanto limpava o vestidinho. — Estou aqui. — Em prantos, correu até a amiga.

As duas se abraçaram enquanto choravam juntas.

— Cadê a sua mãe...?

— Mamãe... — o olhar transtornado de Zena pousou nos destroços da antiga casa —... se foi.

Com muito pesar, compreenderam, então, o que havia acontecido.

Além das irmãs fadas-formigas e do pai, Adrag destruíra o formigueiro e matara a rainha-mãe, que acabara vítima de seu próprio ódio.

A filha, entretanto, assim como a fada-cigarra, sobreviveu graças ao amor que tinha, ao valor da amizade construída, sendo fortalecida por conter a essência dos Dois Que São Um dentro de si, repelindo assim o Inimigo.

E, após tudo aquilo passar, com a bênção dos Deuses, construiu um novo formigueiro. Daquela vez, para a fada-cigarra morar nele, ao seu lado, com a condição de que ela explorasse seu talento musical e trabalhasse, cantando, dançando e compondo.

O lar ficaria marcado para sempre, com o nome de Escudo. O Escudo do amor: mais forte do que um diamante, mais duro do que chumbo, duradouro como uma árvore centenária e, ainda, deixando um legado eterno para as gerações vindouras.

 

— Fim. Gostou da história?

— Gostei! Então quer dizer que elas duas foram as últimas fadas de sua espécie a viverem aqui?

— Sim!

— Mas, mãe... essa história é real?

— Não, minha filha, não! — A Fada-Abelha-Rainha achou graça. — É só uma lenda.

— Mas a senhora diz que toda lenda tem um fundo de verdade.

— E realmente tem.

— Então essas fadas existiram mesmo?

— Não. E nem poderiam! — Sacudiu a cabeça — Primeiro que, para Adrag não conseguir destruir, é necessário que pelo menos mais da metade da população de um planeta absorva a energia dos Dois Que São Um, o que não aconteceu. Mas, mesmo assim, esta é uma história excelente para entendermos a grande diferença entre a natureza divina e a do Inimigo, que são exatamente opostas.

— E o que mais, mãe?

— Bom... achados arqueológicos já provaram que realmente nunca existiram fadas-formigas aqui, nem mesmo na época em que Adrag fugiu do Abismo, por causa daqueles anões — que, aliás, conforme os indícios, é mais provável que tudo tenha ocorrido no verão!

— No verão? — exclamou a princesa. — Mas, na história...?

— Sim, provavelmente aconteceu no verão, ao contrário do que a história diz. Olha... tudo isso que falei para você, se a gente for olhar bem, faz sentido, afinal, Raylanth é uma ilha bastante isolada e fria, que foi erguida por vulcões submarinos há milhões de anos, e é considerada recente em termos geológicos. Nossa fauna e flora são únicas por isso!

— Verdade. Tenho orgulho de ser de Rayslanth, mãe!

A Fada-Abelha-Rainha esboçou um sorriso.

— Eu também, minha filha. E é assim que tem que ser! Se nós mesmas não tivermos orgulho de nossas origens, quem mais vai ter?

A princesinha agradeceu à mãe pela história e retornou aos seus aposentos, cantando. Alegre e dançante como uma fada-cigarra. Ciente de seu dever como uma fada-abelha.

Pois a primeira batalha contra Adrag no Mundo dos Mortais virou lenda. Ressignificada, reinterpretada e recontada de diferentes formas no decorrer dos milênios que se seguiram, por índoles boas e ruins, pelo mais sensato e pelo menos sensato dos mortais. Atendendo aos mais diversos objetivos, como o de educar a nova geração, a geração do amanhã, do amanhã que se torna hoje e um dia se torna ontem: seja rompendo com o passado e encarando o futuro com olhares renovados, seja mesclando continuidades e rupturas, nesta jornada linear, armazenada no Tempo, que preservaria a sua memória para sempre, e destinada ao futuro: às vezes próximo, às vezes distante.

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